terça-feira, 15 de maio de 2012

Natimorto - Ceci n'est pas un film





Um conto claustrofóbico mostra a relação doentia de um casal de inominados, ambientado em meio a carpetes, papel de parede, fumaça de cigarros, café, luzes neon e rancores vomitados. Essa é a sinopse de Natimorto (2009), uma preciosa adaptação imagética do romance (O Natimorto – Um musical silencioso) do desenhista, escritor, ator e dramaturgo Lourenço Mutarelli
Narrado em primeira pessoa, o livro de linguagem teatral e personagens sem nome, mencionados por Mutarelli pelas alcunhas de O agente e A voz, constroem uma trama gerada inicialmente pela provável empatia entre fumantes, que se transforma e cresce cancerosamente a cada carteira de cigarros. No filme, Simone Spoladore (Lavoura Arcaica) faz o papel da Voz, uma cantora lírica (com a tecla de mudo precionada), o Agente, que não tem ação para nada, é interpretado de forma inocente pelo próprio Mutarelli.


Provocado pelas angustia da existência, o drama apresenta personagens insólitos. O enredo se estabelece a partir da peculiaridade desses personagens; o Agente tem a incrível habilidade de contar histórias e também de desenvolver teorias sem causa, ele traça um paralelo entra as mórbidas imagens impressas no verso das carteiras dos cigarros e os arcanos das cartas do tarô, criando a partir da interpretação das imagens anti-fumo previsões de como será seu dia. Acredita encontrar na Voz, uma jovem meiga, aparentemente vulnerável e arrogante, de talento apenas apreciado por ele, a companhia perfeita para dividir seus solitários dias em um quarto de hotel. Quando se apodera do conceito filosófico de Solidão, ele argumenta à Voz que a sociedade não é capaz de reconhecer o talento de ambos, o melhor seria “esquivar-se da sociedade, na qual, ao tornar-se numerosa, a vulgaridade domina”, como assim pensou Schopenhauer. 

A estética das cenas fazem referencias claras ao misticismo das cartas do tarô e se mesclam entre cortes, recortes e flashbacks, lembrando Aronofsky em seus primeiros trabalhos. O montador, Oswaldo Santana dá a dinâmica necessária pra que consigamos suportar a experiência de tantos minutos de conversas, hora angustiantes, hora persuasivas.  As narrativas em off feitas pelo músico Nazi dão o mesmo caráter subjetivo encontrado no livro. A bela fotografia de Lito Mendes nos trás cores cruamente contrastantes e uma ligeira granulação de ar intimista. A trilha minimalista, nesses filmes claustrofóbicos cria um clima surreal.  Tudo isso torna o filme desafiador e viciante como nicotina. 
Para o diretor Machline, Natimorto é “uma história de amor”, porém observamos de forma contraditória que o que menos se “enxerga” nas cenas do longa é aquele sentimento dotado de características sublimes que vemos nos romances, talvez algo mais platônico. De fato há um romance perturbador, uma novela de terror onde a solidão (na companhia de si mesmo) acaba por mostrar a subjetividade que por hora se esconde até de nós mesmos. O ato narcisista de se ver refletido não quer dizer se enxergar, pois, nisso só vemos a aparência comum a todos. Longe das aparências, no poço mais profundo de nossa existência que vemos o que realmente somos. Voltamos ao pensamento schopenhaueriano, em que "na solidão, onde todos se veem limitados aos seus próprios recursos, o indivíduo enxerga o que tem em si mesmo”. A história trata da transformação provocada pela descoberta do monstro que cada um tem dentro de si. Na solidão o homem vê seu monstro se revelar e crescer, como numa metamorfose Kafkiana.

Jeune fille mangeant un oiseau (Le plaisir)
Diante da descoberta do seu monstro interior, o Agente definha afogado em café e na fumaça de seus cigarros contempla sua própria insignificância. “Porque na solidão o mesquinho sente toda a sua mesquinhez, o espírito elevado toda a magnitude de sua grandeza; em suma, cada qual sente aquilo que é,” - justificaria Schopenhauer. O Agente inveja o natimorto, que viveu uma vida intrauterina, sem ter sido obrigado a convivência na sociedade, morreu puro, tendo apenas a si. Inspirando-se na figura antifumo, o Agente mesmo sabendo que "fumar provoca impotência sexual", acende mais um cigarro e vai além... para se ver livre dos falsos prazeres do mundo, torna-se assexuado por opção, ou porque, o que vem do mundo não lhe excita. A presença lasciva da mulher, que demonstra pureza apenas em sua voz, desperta e provoca o desejo que ele repudia. Por isso “verte sêmen como se fossem lágrimas, chora pelo órgão reprodutor infecundo”, sem que ela nem sequer esteja presente, goza sua ausência. Mesmo que diferente, essa mórbida relação do casal, em certos momentos aparece tão sombria quanto em Anticristo (2010) de Von Trier e em outros momentos, tragicômica como em A Erva do rato (2008) de Júlio Bressane.


Não é uma superprodução, ou um grande filme, mas uma grande história, amparada por uma gama de recursos técnicos que asseguram a fidelidade e a qualidade de uma história bem contada. Como sabemos, há várias formas de se contar uma história e a adaptação cinematográfica que lhes apresento é sem dúvida uma das formas mais fiéis. Cheio de grandes referências filosóficas e artísticas, que vai da ironia de Baudelaire a Nietzsche. 
Realmente uma ótima releitura de Mutarelli, em seus diálogos instigantes, seu humor negro, sua maldade inteligente e bem destilada. Pode não parecer, mas tudo isso é sutilmente belo e grandioso. 
Natimorto, não é somente um filme, é arte, filosofia e psicanálise; não serve  como divertimento, embora provoque algumas risadas, duvido que alguma pessoa se distraia frente a ele e que saia ilesa após a experiência, digo, sem reflexões ou angustias. Um Musical Silencioso, uma atmosfera cancerosa e sufocante que violenta nossa consciência e suprime nossa paz. Não aconselho aos que forçosamente procuram a felicidade fora de si. 


Referências:
(Arthur Schopenhauer, in Parerga e paralipomena - Aforismos para a Sabedoria de Vida )


Trailer:


Acho que vale a pena, pra finalizar, um poema do Baudelaire que lembra muito a atmosfera do filme Natimorto.



O QUARTO DUPLO





Um quarto que parece um devaneio, um quarto verdadeiramente espiritual onde a atmosfera estagnante é ligeiramente tingida de rosa e azul.

A alma toma um banho de preguiça, aromatizada pelos pesares e o desejo. É algo de crepuscular, de azulado e de rosado; um sonho de volúpia durante um eclipse.

Os móveis têm as formas alongadas, prostradas, lânguidas. Os móveis têm o ar de que sonham; diríamos dotados de uma vida sonambúlica como um vegetal ou um mineral. Os tecidos falam uma língua muda como as flores, como os céus, como os sóis poentes.

Nas paredes nenhuma abominação artística. Relativamente ao puro sonho, à impressão não analisada, a arte definida, a arte positiva é uma blasfêmia. Aqui tudo tem suficiente clareza e a deliciosa obscuridade da harmonia.
Um aroma infinitesimal da mais original escolha, ao qual se mistura uma levíssima umidade, flutua nessa atmosfera, onde o espírito sonolento é embalado por uma sensação de estufas aquecidas.
A musselina chora abundantemente diante das janelas e diante do leito; ela se derrama em cascatas de neve. Sobre esse leito está deitado o Ídolo, a soberana dos sonhos. Mas como ela está aqui? Quem a trouxe? Que poder mágico instalou-se nesse trono de devaneios e volúpia? Que importa! Ei-la! Eu a reconheço.
São esses olhos cuja flama atravessa o crepúsculo; esses sutis e terríveis olhares que eu reconheço em sua assustadora malícia! Eles atraem, eles subjugam, eles devoram o olhar do imprudente que os contempla. Já estudei muitas vezes essas estrelas negras que comandam a curiosidade e a admiração.
Por qual demônio benevolente devo eu ter sido envolvido assim de mistério, de silêncio, de paz e de perfumes? Ó beatitude! Isso que nós chamamos geralmente de vida, mesmo em sua expansão mais feliz, nada tem de comum com essa vida suprema que, agora, eu conheço e saboreio minuto a minuto, segundo a segundo.
Não! Não há mais minutos, não há mais segundos! O tempo desapareceu; é a Eternidade que reina, uma eternidade de delícias.
Mas uma pancada terrível, fortíssima, ressoou na porta e, como nos sonhos infernais, pareceu-me que recebia um golpe de uma enxada no estômago.
E depois um Espectro entrou. É um oficial de justiça que vem me torturar, em nome da lei; uma infame concubina que vem exibir sua miséria e juntar as trivialidades de sua vida às dores da minha; ou então um jovem secretário de diretor de jornal que vem reclamar a entrega de um manuscrito.
O quarto paradisíaco, o Ídolo, a soberana dos sonhos, a Sílfide, como dizia o grande René, toda aquela magia desapareceu com o golpe disparado pelo Espectro.
Horror! Eu me lembro! Eu me lembro! Sim! Este chiqueiro, este ambiente de eterno desgosto está bem dentro de mim. Vejam os móveis burros, empoeirados, capengas, a lareira sem chamas e sem brasas, suja de escarros, as tristes janelas onde a chuva traçou seus sulcos na poeira; os manuscritos rasurados ou incompletos; o almanaque onde o lápis marcou as datas sinistras!
E esse perfume de um outro mundo, com o qual eu me embriagava com uma sensibilidade aperfeiçoada, ei-lo substituído por fétido odor de tabaco misturado a um mofo nauseabundo. Respira-se aqui, agora, o ranço da desolação.
Nesse mundo estreito, mas tão repleto de desgostos, um único objeto conhecido me sorri: a garrafinha de láudano; uma velha e terrível amiga, como todas as outras. Oh! fecundas em carinho e traições.
Oh! Sim, o Tempo reapareceu, o Tempo reina soberano agora; e com o horroroso velho voltou todo o demoníaco cortejo de Lembranças, de Arrependimentos, de Espasmos, de Medos, de Angústias, de Pesadelos, de Cóleras e de Neuroses.
Eu vos asseguro que os segundos agora são fortemente e solenemente acentuados e cada um saltando do pêndulo diz:
“Eu sou a Vida, a insuportável, a implacável Vida.”
Só há um Segundo na vida humana com a missão de anunciar uma boa nova, a boa nova que causa em cada um de nós um medo inexplicável.
Sim! O Tempo reina, ele retomou sua brutal ditadura. Ele me empurra, como se eu fosse um boi, com seu duplo aguilhão. “Eia Vamos, então, burrico! Sua então, escravo! vive, então, condenado!

(Pequenos poemas em prosa/Baudelaire, Charles)

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