quinta-feira, 1 de setembro de 2016

ENTREVISTA COM JÚLIO EMILIO BRAZ
PARA O BLOG FASEAFASE.BLOGSPOT.COM
EXPEDIENTE: Weynna Doria, Ceres Lima e Renato Medeiros


EMENTA: O objetivo dessas entrevistas visa mostrar o panorâma em que se encontra os Roteiristas de Historias em Quadrinhos que contribuíram de forma geral para a formação de um público leitor e consumidor dessa mídia. Nesse sentido, procuramos saber o que pensam os grandes mestres e escritores desse universo sobre o momento atual, procurando igualmente traçar um perfil do pensamento e das influências tanto de Roteiristas “consagrados” como dos noviços na perspectiva da saber quais os rumos que podemos esperar para as HQs na contemporaneidade.




BIOGRAFIA:
Júlio Emílio Braz nasceu em 16 de Abril de 1959, na pequena cidade de Manhumirim, Aos pés da Serra de Caparaó. Aos cinco anos mudou-se para o Rio de Janeiro, cidade que adotou como lar. É considerado um autodidata, aprendendo as coisas com extrema facilidade. Adquiriu o hábito de leitura aos seis anos.
CARREIRA:
Iniciou sua carreira como Escritor de roteiros para histórias em quadrinhos, publicadas no Brasil Portugal, Bélgica, França, Cuba e EUA. Já publicou mais de cem títulos.
   Em 1988 recebeu o Prêmio Jabuti pela publicação de seu primeiro livro infanto-juvenil: SAGUAIRU.

Em 1990 escreveu roteiros para o programa Os trapalhões, da TV Globo, e algumas mini novelas para a televisão do Paraguai. Em 1997 ganhou o Austrian Children Book Award, na Áustria, pela versão alemã do livro CRIANÇAS NA ESCURIDÃO (Kinder im Dulkern) e o Blue Cobra Award, no Swiss Institute for Children-s Book.

ENTREVISTA:
1 – Fico muito honrado por iniciar essa seção de entrevistas com um dos maiores roteiristas brasileiros de HQ´s, na minha opinião, Julio Emilio Braz, e começo nossa conversa perguntando sobre o início de sua carreira como roteirista de Historias em Quadrinhos na década de oitenta, me diz do que você se lembra daquela época, dos ilustradores, mercado, roteiristas e a relação com as editoras?
Resposta: Foi realmente engraçado. Estávamos no último trimestre de 1980 e eu acabara de perder o emprego, gerente de retífica. Não conseguia emprego e estava meio desesperado. Foi nessa época queum amigo de meu irmão, que trabalhava na Editora Vecchi, falou que a editora estava publicando autores nacionais e como eu escrevia, deveria levar meus trabalhos lá. Ele me deu o nome do editor, Otacílio Barros, e eu, como não tinha nada a perder, fui lá. Cresci lendo quadrinhos e tinha um monte de ideias para personagens e as sinopses de várias histórias. Levei as minhas ideias e o Ota realmente foi muito legal. Leu tudo pacientemente, mas me disse que as revistas que publicavam, noves fora Ken Parker e Tex (entre outros), que eram western e material importado da Italia, se destinava ao público leitor de terror. Não sei se ele notou meu desânimo, mas pinçou um dos personagens que eu levara (um capa & espada que se passava no Recife, durante a Invasão Holandesa no século XVII), e sugeriu que eu o transformasse num personagem de terror. Na hora que o Ota estava sendo apenas gentil ou estivesse fazendo jus a cara de louco que eu imputara a ele desde que entrei em sua sala. Mesmo assim topei e foi deste modo que o Pedro Salvaterra, nome do meu personagem, se transformou em Jesuíno Boamorte, um morto-vivo que lutava contra os holandeses. Naquela época a revista Spektro, onde a história foi publicada, tinha uma pesquisa no final de cada número e os leitores gostaram da história e o Ota pediu mais. Vale salientar que grande parte do sucesso da série se deve ao excelente Zenival Ferraz, cujo traço refinado e a sólida pesquisa iconográfica, deram um plus no trabalho. Dali em diante fui escrevendo e sendo aceito nas outras revistas da Vecchi. Trabalhei com gente boa de verdade como Otto, o próprio Zenival, Julio Shimamoto, Colin, e através desses trabalhos e contatos fui alcançando as editoras paulistas e a curitibana Grafipar, onde, inclusive, comecei a fazer roteiros eróticos. Naqueles anos 80 e até meados de 90, havia muitas publicações (muitas, bem efêmeras, vale salientar) abrindo as portas para gente do quilate do Mozart Couto, Rodval Matias, Bené Nascimento, Deodato Filho, entre tantos, muitos deles que acabariam alcançando até o mercado estrangeiro, particularmente o norte-americano, como é o caso do Bené (Joe Bennett) e o Deodato (Mike Deodato). Havia certo amadorísmo na coisa toda, mas muita criatividade e imaginação. Existiam maravilhosas impossibilidades como as revistas da Editora D’Arte, do grande Rodolfo Zalla, produzidas sabe-se lá como, mas que realmente sustentou muitos caras de talento (ouso dizer aqui que Zalla foi um dos caras mais honestos com que lidei até hoje; os chequinhos que mandava pelos trabalhos chegavam direitinho e em todas as ocasiões que precisei, ele me ajudou imensamente, aoponto de, acredito, ter comprado mais roteiros meus que conseguiu efetivamente ilustrar e publicar), ou o entusiasmo juvenil do Franco de Rosa, outro grande acrobata daquela indústria meio louca mas muito produtiva. Outra coisa interessante era a enorme quantidade de fanzines que em muitas regiões do país, como o Nordeste, serviam de espaço para a divulgação de autores locais.
2 – Bem considerando que naquele tempo, e creio como agora continua sendo muito difícil roteirista de quadrinhos viver somente disso, era natural você buscar outros meios de sobrevivência que não se resumisse as Hqs, Isso nos leva a perguntar se a transição das Hqs para a literatura, especificamente a adolescente em que você se destaca notadamente aconteceu naturalmente ou teve alguma dificuldade?
Resposta: Nem tanto. Escrever é escrever. Salvo as necessárias adaptações a cada gênero, a fórmula é sempre a mesma: ter a ideia e tirá-la da cabeça para aprisionar no papel. Realmente, para o roteirista e principalmente naqueles tempos, era difícil viver apenas da venda dos roteiros até porque as editoras também lidavam com muitas dificuldades na busca de espaço e aceitação num mercado majoritariamente dominado pela produção estrangeira. Por isso, enveredei inicialmente paraa produção de livros de bolso. Escrevia basicamente western para editores como Monterey, Cedibra, Nova Leitura, entre outros, e cheguei a me valer de 39 pseudônimos diferentes. Aliás, foi exatamente por conta deste tipo de trabalho que acabei na literatura infanto-juvenil. Eu estava saturado de escrever bang bang e pior ainda, um dia me peguei frente a constatação de que sabia mais sobre o índio norte-americano (ainda sei, confesso) do que sobre o índio brasileiro, ou seja, eu “estava” (geograficamente) no Brasil mas não “era” brasileiro. Filosofias aparte, comecei a ficar encafifado. Adoro enviar cartões de Natal (mesmo hoje, com essas tecnologias modernas, meus amigos mais íntimos recebem o bom e velho cartão) e estávamos no Natal. Fui a uma papelaria do meu bairro para comprar alguns e encontrei um cesto onde havia vários livros infanto-juvenis em promoção. Comprei por curiosidade e nem cheguei a lê-los. Ao mesmo tempo, estava em São Paulo e um grande amigo da época (e sumido) Roberto Kussumoto, que ilustrava muitos de meus roteiros, principalmente erótico, e foi meu guia quando eu ainda não sabia andar por São Paulo, me apresentou ao então editor da Editora FTD, Lino de Albergaria, pois havia falado com ele que pretendia escrever juvenis e o Roberto ilustrava para eles. Fomos apresentados e o Lino pediu que eu mandasse alguma coisa. Eu havia lido no Jornal do Brasil um artigo sobre animais brasileiros em extinção e era fã de Jack London, cujo livro que mais me impressionou fora “Chamado Selvagem”. Na matéria falava sobre o lobo-guará e eu pensei na história do London. Uma não tem nada a ver com a outra, mas falavam de cães, lobos e eu escrevi SAGUAIRU, meu primeiro juvenil. Não deu certo na FTD, pois quando mandei o livro, o Lino não estava mais lá e a editora que se encontrava em seu lugar não se interessou pelo original. No entanto, eu já tinha o livro pronto e comecei a procurar uma editora para ele. Acabei na Atual Editora (curiosamente a editora que publicara os livros que euhavia comprado na papelaria no Natal), onde um sujeito muito gente fina, Paulo Condini, acreditou no texto e o publicou. Bom, o livro saiu, em 1989 me deu o Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro de autor revelação e eu me entusiasmei e resolvi me dedicar mais ao gênero. Hoje são quase duzentos títulos publicados e prêmios  (e publicações)também fora do Brasil. 
3 – Nessa perspectiva sinto a necessidade de saber sua opinião a respeito da possibilidade de considerarmos quadrinhos uma espécie de literatura?
Eu aprendi a ler com quadrinhos. Portanto, quadrinhos é literatura, hoje mais do que nunca. Talvez a mais indicada para o público iniciante, pois alia o visual à escrita. Para quem ainda teima em não aceitá-los como tal, vale a pena citar nomes de autores como Neil Gaiman, Allan Moore, entre outros, que hoje estão entre os grandes autores de sua época de literatura fantástica.
4 – Pois bem, gostaria nesse momento de lhe perguntar se tem lido alguma das Histórias em quadrinhos produzidas no país na atualidade, e se leu qual foi sua impressão?
Resposta: Algo que tem me impressionado sobremaneira é a nova tendência de adaptação de clássicos da literatura para os quadrinhos. Não que seja uma grande novidade. A Editora EBAL, lá para os idos de 40/50 do século XX já fizera muitas adaptações. No entanto, o que espanta agradavelmente é a qualidade dos trabalhos.
5 – Considerando que a evolução dos roteiros complexos já tem um tempo, como podemos notar nas HQs atuais, em termos de roteiros de Histórias em Quadrinhos você tem algum roteirista preferido seja ele atual ou do passado que te influenciou?
Resposta: Sempre adorei Neil Gaiman e continuarei fã de carteirinha do cara. No entanto, um roteirista que me impressionou desde que li a primeira de suas histórias foi Giancarlo Berardi, autor, junto com Ivo Milazzo, do western Ken Parker. Suas histórias são impressionantes. “Adah”, bem como outras tantas (chega a ser difícil escolher), ficaram para sempre em minha memória. Lamentavelmente, em uma de minhas mudanças, eu perdi toda a minha coleção dos tempos da Editora Vecchi (e gostaria de readquiri-la) bem como todos os 412 bolsolivros de western que escrevi (estou recuperando agora, adquirindo em sebos pelo país).

6 – Muito bem, sinto a necessidade de lhe perguntar como era o processo de construção de seus roteiros de histórias em quadrinhos. Havia muita pesquisa, utilizava referências, ou era mais intuitivo mesmo?
Resposta: Sou apaixonado por História e inclusive acabo de concluir meu curso de Licenciatura em História na Unirio. Além de gostar de trabalhar com temática histórica, gosto de pesquisar muito, o que faço e mesmo ao fazer, já gosto de pensar em termos do estilo de desenho que gostaria de ver associado ao que estou escrevendo. Anoto tudo o tempo todo (nomes, sugestões de títulos, apelidos que ouço, sou um colecionador de coisas). Portanto, sou metódico ao bolar um roteiro. Obviamente começo com uma ideia e faço igual a um camelo, fico ruminando a ideia até por anos, construindo-a pacientemente na cabeça. Anotada a ideia em uma sinopse resumida, construo o que chamo de esqueleto. Trata-se de uma ficha onde anoto os nomes dos personagens e locais onde ocorrerá a história. Descrevo física e psicologicamente os personagens e fisicamente os locais (por vezes, arrisco até fazer plantas e desenhos). Posteriormente, calculo mais ou menos quantas partes ou capítulos terá a história e em cada número descrevo a ação principal em torno da qual vou paulatinamente desevolvendo não só a história quanto a hipótese dos vários diálogos e situações. Finalmente escrevo a primeira história, ou seja, capturo a ideia. É o texto bruto sobre o qual ireitrabalhar para tirar excessos, redundâncias, amarrar bem a narrativa. Estando satisfeito, envio o material para a editora ou diretamente para o desenhista/ilustrador.
7 – Sei que você trabalhou com muitos Desenhistas fantásticos nos anos 80  e gostaria de conhecer como era o processo de criação de historias em quadrinhos com eles e também gostaria de saber se tinha algum desenhista preferido daquela época que trabalhou contigo e lhe causou uma boa impressão?
Meu preferido desde sempre foi o Mozart Couto. Fizemos muitas coisas juntos e mesmohoje, eu o chamo para ilustrar muitos de meus livros. No entanto, lidei com uma turma bem legal como o Flávio Colin, o Shimamoto, Rodval Matias, Seabra, Kussumoto, Otto e por aí vai. Muitas vezes eu escrevia os roteiros e mandava para a editora que aí sim enviava para eles. No entanto, em alguns casos, o trabalho foi direto. Fiz com o Mozart um personagem infantil chamado Tambatajá, para um editor belga, e tínhamos longos papos pelo telefone em cima do que eu escrevia. Lembro também que fiz um material legal com o Rodval Matias para o mesmo editor, Aventureiros da Solidão, sobre bandeirantes, e uma vez passei um tempão discutindo com o Rodval sobre uma cena onde um dos bandeirantes matava uma sentinela índio antes de seu grupo atacar a aldeia. Acontece que a sentinela era um menino e aquilo tocou a sensibilidade paterna do Rodval. Nós ficamos mais de horano telefone discutindo, ele querendo que eu tirasse a cena ou aumentasse a idade da sentinela, e eu fincando pé. Hoje é engraçada, legítima discussão entre esquizofrênicos, mas foi tenso. De qualquer forma, foi um trabalho lindo e até hoje inédito no Brasil. Fiz também um trabalho legal com Arthur Garcia da Rosa, Cruzadinhos, que era uma espécie de Asterix português que ficou bem bacana (este chegou a ser publicado no Brasil, mas a edição fora do Brasil eu não cheguei a ver).
8 – Se possível for você poderia comentar como era o contexto de produção das hqs naquela época e qual a diferente com a produção atual?
 Resposta: Como disse no início, as coisas eram menos profissionais nas editoras que publicavam 100% de material nacional. A estrutura era pequena, a distribuição problemática e as dificuldades, enormes. Muitas revistas tinham vida curta e os pagamentos eram irregulares. Havia o mercado de produção nacional, mas associada a personagens estrangeiros como os personagens da Disney publicados pela Abril (Zé Carioca, entre outros) eo Recruta Zero (escrevi roteiros para ele). Havia o Maurício de Souza e o Ziraldo, mais profissionais. No entanto, a coisa era incipiente, para dizer o mínimo. Hoje tudo é bem mais profissional até pelo fato de muita gente boa brasileira estar publicando fora e os meios de produção permitirem produções independentes de qualidade. A tecnologia também conspira a favor com grandes autores publicando seu material diretamente na Internet ou se valendo de mecanismos de autoprodução como crodwfunding.
9 – Sabemos que você é um grande roteirista além de ter contribuído para as HQs e influênciou muitos roteiristas atuais e que também trabalhou como roteirista em series e programas de tv, mas gostaria de saber se há diferença em escrever em uma mídia ou em outra e como foi a transição de uma para outra?
Resposta: Nenhuma diferença. Existem adaptações a serem feitas, mas não vejo muita dificuldades para, por exemplo, um roteirista de quadrinhos escrever roteiros para a televisão e o cinema. Pelo contrário, tal experiência agrega valores, pois o roteirista de quadrinhos em certa medida ilustra (pelo menos mentalmente) o roteiro que está escrevendo. Realmente não há diferença.

10 – Esta última pergunta é algo que algumas pessoas como eu gostaríamos de fazer, mas que nunca temos a oportunidade adequada para peguntar, sobre ainda podemos ter a esperança de Júlio Emilio Braz voltar pelo menos uma vez a fazer roteiros de HQs? Isso é Possível?
Resposta: Claro. Minhas primeiras leituras foram os gibis que minha tia, empregada doméstica, levava da casa do patrão dela para mim. Foram os gibis que uma vizinha, dona Bela, levava do filho dela (eram gibis de autores brasileiros de editoras como Taika). Adoro quadrinhos. Consumo ferozmente até hoje. Tenho muitas ideias arquivadas e roteiros prontos, deixados em algum lugar de meu escritório. Agora mesmo terminei um texto que mistura literatura e quadrinhos que o Mozart está ilustrando para mim, lembranças e influência de Moonshadow, outro texto deslumbrante que as novas gerações deveriam conhecer.


Agradeço desde já a imensa honra que tive de entrevistar esse grande e fantástico escritor que há muito me influenciou e me ajudou a ler e escrever, foi e é o formador de vários leitores e ainda continua sendo, graças aos céus. Por isso que digo, considerando que o universo dos quadrinhos em termos de ganhos materiais é ingrato e até mesmo perverso. Sei disso já tenho a minha cota de consciência sobre o assunto. Entretanto, vendo agora quando estou diante de alguém como o Julio Emilio Braz que só conheço de foto e de ter lido muita coisa sobre ele e de ter amigos lá dos idos anos oitenta que me falaram sobre esse grande escritor me faz acreditar que esse “universo” ainda é mágico e lindo. Talvez por isso, pelo quadrinho me lembrar épocas mais inocentes e até mesmo ter me ensinado muitas coisas através daqueles roteiristas maravilhosos que mesmo sendo mau pagos e não tendo o reconhecimento que mereciam faziam e ainda fazem por amor a arte de contar historias e fazer as pessoas sonharem com ele. Valeu a todos por conhecerem um pouco sobre esse ícone das HQs nacionais.  

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